A Estrada de Ferro de Porto Alegre
A histórica linha férrea de Porto Alegre teve origem no propósito da administração da cidade de melhor atender a uma necessidade sanitária. No final do século XIX a Intendência Municipal oferecia o serviço de entrega e remoção domiciliar de pequenas fossas, chamadas cubos ou cabungos, que colocadas sob os assentos dos banheiros acumulavam os excrementos fecais. Esse serviço procurava remediar a falta de esgoto. O material fétido e insalubre era encaminhado até a chamada “Ponta do Dionísio”1 no hoje Bairro Assunção e, mais tarde, até a “Ponta do Asseio” ou “Ponta do Mello” 2, atual Bairro Cristal.
Como não havia esgotos, tampouco fossas ou sumidouros, a solução encontrada foi o transporte dos excrementos em “cubos”, com uma abertura na parte superior onde era atarraxada uma tampa para vedação e transporte.
Cabungueiro executando o seu ofício. 3
O primeiro destino definido para o despejo dos dejetos foi o trapiche localizado ao lado da cadeia pública.
O detalhe no mapa de 1888 destaca o trapiche na confluência das ruas Riachuelo e Duque de Caxias, junto à praia. 4
Ramiro Barcelos (médico e político) defendeu um destino mais apropriado para os dejetos, longe do centro urbanizado. Uma comissão médica sugeriu a Ponta do Dionísio, ao sul, a uma distância de aproximadamente dez quilômetros do centro, para o despejo e limpeza dos cubos. 5
Decidido o local, passou-se a discussão de como fazer o transporte: se fluvial ou por ferrovia.
“Ciente de que o Conselho unanimemente reconhece a necessidade urgente de remoção das matérias excrementícias para a Ponta do Dionísio, local indicado pela Comissão Médica, encarregado de dar parecer a respeito, havendo apenas alguma dúvida sobre o meio de transporte a adotar. (…) Diz que sabe o Conselho que quase todos os melhoramentos projectados pelo Intendente para cuja realização completa é necessario um empréstimo de setecentos contos de réis, são reclamados desde muitos anos pelas autoridades competentes e pela opinião popular sem dúvida porque esses melhoramentos interessam muito de perto a saúde pública. Diz que agora mesmo acaba a inspectoria de higiene de declarar ao Intendente que a construção da Estrada de ferro para a Ponta do Dionísio é inadiável, que é necessário remover quanto antes o despejo das matérias excrementícias do local ao lado da cadeia civil.” 6 (a grafia da época foi preservada)
De acordo com o exposto pode-se concluir que foi a necessidade de dar um novo destino aos dejetos fecais que levou a efetiva criação da chamada Ferrovia do Riacho. O traçado da estrada é mostrado na imagem abaixo:
Após um processo litigioso com José Joaquim Assunção dono da área onde situava-se a Ponta do Dionísio, a reconstrução e conclusão da estrada foi efetivada em 1889 e a Intendência Municipal optou pela Ponta do Melo como local dos despejos a partir de 13 de novembro daquele ano. 7
Sérgio da Costa Franco, em seu Guia Histórico de Porto Alegre, explica que:
“a postulação do proprietário José Joaquim Assunção, dono da área da Vila Assunção, inconformado com a implantação da ferrovia em suas terras, sem indenização. Como decorrência (…) a reconstrução da Estrada de Ferro do Riacho em 1899 fez-se até a Ponta do Melo, onde se construiu um trapiche para o despejo das fezes no rio, sendo retirado o segmento final que ia até a Ponta do Dionísio. Em compensação, implantaram-se 800 metros de trilhos até o Bairro da Tristeza. Esse último trecho, posto em tráfego desde 14/01/1900, viria a ter um importante significado social, marcando o início da expansão da Tristeza como local de veraneio e foco de lazeres da população burguesa de Porto Alegre. 8
Notas publicadas na imprensa dão conta de como era o serviço prestado aos usuários da Estrada do Riacho:
Correio do Povo do dia 11 de março de 1909, noticiava (preservada a grafia da época):
Apanhada por um trem – Hontem, ao meio-dia, um trem da estrada de ferro do Riacho, nas immediações da rua Barbedo, apanhou Maria Francisca da Conceição, vulgo Marajó, que imprudentemente atravessava a linha. No ambulatório do 2º posto, Marajó recebeu curativos, em ferimentos e contusões na omoplata esquerda. Depois de pensada recolheu-se ella á sua residencia. O capitão Leonel Correia, administrador daquella estrada, apezara da casualidade do facto, puniu os machinistas do trem.(a grafia da época foi preservada)
Correio do Povo do dia 29 de outubro de 1910, noticiava (preservada a grafia da época):
ESTAÇÃO FERROVIÁRIA DA TRISTEZA
(a grafia da época foi preservada)
De 1 de novembro proximo em diante, vigorará, nessa estrada, o seguinte horário:
Dias uteis – Partidas do Riacho: ás 6, 8 e 10 horas da manhã, e ás 2, 4 e 6 da tarde; partidas da Tristeza: às 6.45, 8.45 e 10 horas da manhã e ás 2.45, 4.45 e 6.45 da tarde.
Domingos – Partidas do Riacho: ás 6, 7.30, 9 e 10.30 da manhã; e ás 1.30, 3, 4.30, 6 e 7.30 da tarde; partidas da Tristeza: ás 6.45, 8.15, 9.45 e 11.15 da manhã; ás 2.15, 3.45, 5.15, 6.45 e 8.15 da tarde. Para attender á exigencia do serviço, a Directoria de Obras poderá alterar esse horario.
Correio do Povo do dia 14 de dezembro de 1911, noticiava (preservada a grafia da época):
Estrada de ferro do Riacho – Alguns trens dessa estrada iniciaram, ante-hontem, ás 2 horas da tarde, o serviço de trafego do extremo da rua General Auto, ao começo da rua Duque de Caxias. Foram reduzidos os preços das passagens pela seguinte fórma: Da rua General Auto á rua Caxias e desta ao Asylo de Santa Thereza e dahi ao Crystal ou á Tristeza, 200 réis. Os trens occupados pelo Asseio Publico foram separados dos de passageiros
Zero Hora do dia 24 de janeiro de 2011:
Do Centro para a Tristeza
No início do século 20, os porto-alegrenses que queriam fugir do calor do verão podiam tomar o trem, junto ao Mercado público, no centro e seguir para a Tristeza. A estação de Ildefonso Pinto, na esquina da Avenida Borges de Medeiros com a Avenida Mauá, foi construída e inaugurada em 1927 para ser o ponto inicial da ferrovia Riacho-Tristeza, linha que já existia desde o final do século 19. A Ildefonso pinto era também interligada à linha da Viação Férrea do Rio Grande do Sul (VFRGS). Alguns trens partiam dali para o Interior, passando pela Estação central de porto Alegre. A E.F. Riacho foi aberta em 1899 para o transporte de dejetos, despejados no trapiche da ponta do Mello, na Zona Sul. A partir de 1900, a ferrovia passou a transportar também passageiros, bagagens e mercadorias. A Estação do Riacho ficava na região onde hoje é o Bairro Azenha. Tinha esse nome porque ficava à beira do Arroio Dilúvio que, naquela época, desembocava no Guaíba naquele ponto. A Ildefonso Pinto, portanto, acabou sendo o ponto intermediário entre as estações central e do Riacho. Nos anos 30, a Riacho-Tristeza foi desativada, mas a Ildefonso pinto seguiu funcionando para a VFRGS. Foi demolida somente em 1972.
O blog do Conselho Municipal de Cultura de Porto Alegre (27/04/2011) faz um resumo da história da Ferrovia do Riacho, tendo como referência a dissertação de mestrado do arquiteto André Huyer intitulada A Ferrovia do Riacho: Um Caminho Para a Urbanização da Zona Sul de Porto Alegre, doada por ele ao Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Vellinho:
“A origem remonta ao final do século XIX, por necessidade de transportar os dejetos para serem jogados no Guaíba, em local periférico, poupando a região central da Cidade. A primeira viagem na ferrovia para despejo sanitário na Ponta do Melo foi em novembro de 1899. Como vemos, a prioridade de transporte ferroviário para a zona sul era de asseio, saneamento.
Mas em 1900, o trem iniciou o transporte de passageiros,como alternativa às diligências e ao transporte fluvial. Os moradores do centro eram atraídos por um ambiente mais higiênico e próprio para veraneio como era a zona sul com praia e ar puro, local bom para a saúde,segundo os médicos da época. O fluxo de veranistas para a Tristeza e Pedra Redonda provocou um surto de desenvolvimento,com aumento de consumo de produtos hortigranjeiros e pecuários, início da prestação de serviços na área terciária, loteamentos de chácaras. Já em 1901, abriram os primeiros hotéis na Tristeza.
No entanto, a Ferrovia do Riacho começou a decair nos anos 30, no governo de Alberto Bins, que, por problemas financeiros da Intendência, ofereceu a ferrovia para o Estado. Na época, os ônibus faziam forte concorrência aos trens.
A VFRGS assumiu a Ferrovia do Riacho mas, por problemas estruturais e conjunturais, desativou o transporte de passageiros em 1936 e o de carga em 1941.Com a enchente no mesmo ano, a ferrovia foi destruída e não recuperada.” 9
FONTES
1 A denominação “Ponta do Dionísio” procede da sesmaria de Dionísio Rodrigues Mendes uma das três que deram origem ao município de Porto Alegre.
2 De acordo com pesquisador Padre Ruben Neis, com uma petição de 1888, Francisco Luiz de Melo requereu a posse das terras fronteiras com sua chácara. De onde, provavelmente, decorre o nome – Ponta do Melo. Citado por Sérgio da Costa Franco em seu Guia Histórico de Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2006, Pg. 125.
3 Alves, Helio Ricardo, Porto Alegre foi assim…, Editora Sagra Luzzato, 2001.
4 IHGRGS – Virtual História-Urbana de Porto Alegre, 2005).
5 Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Ata da Sessão de 27 Nov 1883, Pg. 56, citado por André Huyer em A Ferrovia do Riacho: Um caminho para a Urbanização da Zona Sul de Porto Alegre, 2010, Pg 54. Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Vellinho
6 Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Ata da Sessão de 27 Nov 1883, Pg. 52, citado por André Huyer em A Ferrovia do Riacho: Um caminho para a Urbanização da Zona Sul de Porto Alegre, 2010, Pg 55. Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Vellinho
7 Relatório da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, de 19 de novembro de 1900, citado por André Huyer em A Ferrovia do Riacho: Um caminho para a Urbanização da Zona Sul de Porto Alegre, 2010, Pg 62.
8 Franco, Sérgio da Costa, Guia Histórico de Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2006, Pg. 154 e 155.
9 http://cmcpoa.blogspot.com/2011/04/ferrovia-do-riacho.html