Um bom motivo para usar o freio
Celso Gonzaga Porto descreve nesta crônica como era o treinamento dado aos aspirantes motorneiros na época dos bondes.
A Companhia Carris Porto-Alegrense foi famosa no tempo em que utilizava um padrão administrativo americano. Disciplina e rigorismo eram essenciais em todo e qualquer setor da empresa, o que denotava uma administração impecável. E assim era também no quesito de treinamento.
O treinamento mais rigoroso envolvia candidatos a motorneiro de bonde, nome dado ao profissional que conduzia o veículo. O motorneiro era, em verdade, o “motorista do bonde”. Por essa razão, tal treinamento não poderia ser superficial, visto que, no dia a dia, esses futuros profissionais teriam muitas vidas humanas sob sua responsabilidade.
Por vários dias, um bonde devidamente identificado com os dizeres “EM TREINAMENTO”, circulava pelas diversas linhas que constituíam a rede ferroviária da Carris. No comando do grupo de aprendizes, estava sempre um profissional experiente e conhecedor de todos os meandros da arte de “pilotar” um bonde, que procurava intensificar, na prática, os conhecimentos trazidos das aulas teóricas.
O bonde era considerado um veículo seguro. Essa segurança era devida aos diversos sistemas de freio que ele possuía. Todo motorneiro era condicionado a conhecer e saber usar os recursos que o veículo oferecia. Entre esses estava o freio normal a vácuo, acionado por uma alavanca manual junto ao controle do bonde; a reversão, recurso em uma chave que, ao ser invertida na sua posição, fazia o bonde andar para trás; uma alavanca redonda, à direita dos controles, quando girada manualmente, acionava o freio mecânico; um sistema que, em dias de chuva, colocava areia sobre os trilhos para evitar derrapagem. Além desses, havia mais outros recursos que poderiam ser acionados em emergências.
Os aprendizes portavam orgulhosos seu uniforme cáqui, tradicional da Carris, devidamente limpos, bem passados e “engomados”. O fardamento impecável era parte de cobrança ao bom profissional.
Um dos artífices na formação de novos motorneiros era seu Eugênio. Figura respeitadíssima por todo servidor que teve a graça de conviver com ele em diversos momentos da Carris. Respeitado por seu rigorismo e por sua disciplina, que se refletiam até no ritual que mantinha nos horários de início e fim dos intervalos para o cafezinho, hábito mantido pela manhã e tarde no expediente da empresa.
Segundo relato de velhos motorneiros, seu Eugênio postava-se na plataforma dianteira, ao lado do aprendiz, e ali solicitava-lhe as tarefas para que só a presença do instrutor ali era motivo de muita tensão. Para complementar o teste seu Eugênio solicitava ao futuro motorneiro:
-Me dê a sua túnica (casaco do uniforme).
Ato contínuo, ordenava ao aprendiz: ‘Agora coloque oito pontos’.
Oito pontos era a velocidade máxima, possível de ser desenvolvida pelo bonde e, normalmente, a pedida era feita uma grande reta. Quando o bonde atingia a velocidade máxima, seu Eugênio jogava nos trilhos a túnica impecável do aprendiz. Neste momento, ele se dividia em ações nos controles do bonde, usando todos os seus recursos de freio para preservar sua peça do uniforme. A partir daí duas coisas poderiam acontecer: o veículo era freado antes de atingir a túnica e o comentário era:
-Muito bem, se fosse uma pessoa o senhor não a teria matado.
Caso contrário além de destruir a peça do seu uniforme, o comentário era outro:
– O senhor está reprovado. Se sua túnica fosse uma pessoa, ela agora estaria morta.
Resultado: além de perder o casaco, o candidato perderia também o emprego”.
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